O Ônus da Competência

Santa Catarina é prova viva de que um país pode crescer de baixo para cima — apesar, e não por causa, do arranjo federativo. Ao longo dos séculos, o estado forjou uma cultura de trabalho, poupança e organização comunitária que veio com os açorianos no século XVIII, consolidou-se com a colônia alemã de São Pedro de Alcântara no XIX e ganhou novo fôlego com os italianos em núcleos como Nova Trento, Urussanga e o Vale do Itajaí. Esse mosaico demográfico não é cartaz turístico: é a base de um ethos produtivo que sustenta indicadores de excelência até hoje.
Esse desempenho é mensurável. Em 2025, Santa Catarina registrou a menor taxa de desemprego do país (2,2% no 2º trimestre), menos da metade da média nacional — um retrato de um mercado de trabalho dinâmico e formalizante. Em renda e produtividade, o estado se mantém entre os maiores PIBs per capita do Brasil (R$ 61,3 mil em 2022, 5ª posição), com cadeias robustas em metalmecânica, alimentos, têxtil e logística portuária que irradiam competitividade.
Mas a virtude catarinense carrega um ônus: o de financiar, de forma desproporcional, a federação. Dados recentes mostram que, para cada R$ 100 arrecadados pela União em SC, retornam cerca de R$ 30 — um dos piores índices do país. Ou seja, Santa Catarina é contribuinte líquido crônico do sistema, e não por um ano ou outro: desde sempre. É verdade que, em valores absolutos, o estado recebeu mais de R$ 50,9 bilhões em 2024 somando repasses a governo estadual, prefeituras e pagamentos diretos a cidadãos (benefícios, aposentadorias e pensões). Só que montante grande não é sinônimo de justiça: quando comparado à arrecadação local, o saldo permanece negativo.
Há quem sustente que “sempre foi assim” e que a transferência inter-regional é condição para reduzir desigualdades. É uma meia-verdade. Transferências são necessárias; o que é injusto é penalizar sistematicamente o esforço e a eficiência. Santa Catarina não pede privilégio — pede um pacto que não puna a competência. O desenho atual, sustentado por fundos e fórmulas que privilegiam critérios históricos e pouco transparentes, produz incentivos errados: desestimula quem investe, emprega e formaliza, ao mesmo tempo em que não entrega, nas regiões mais pobres, os resultados esperados em desenvolvimento humano.
O caminho existe, e ele passa por calibrar — já — a implementação da Reforma Tributária (EC 132/2023). A emenda criou instrumentos como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR) e o Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais (FCBF). É neles que se pode corrigir distorções, com regras claras: 1) levar em conta o saldo federativo (o que cada estado envia vs. o que recebe), 2) atrelar repasses a metas verificáveis de educação, saúde e produtividade, e 3) criar uma “cláusula de retorno mínimo” por R$ 100 arrecadados, que proteja contribuintes líquidos de um estrangulamento fiscal permanente.
Há ainda um argumento concreto e urgente: Santa Catarina tem necessidades reais que o mercado sozinho não resolve — contenção de cheias e adaptação climática, corredores logísticos, dragagem e expansão portuária, duplicações e ferrovias que destravem a competitividade industrial e agroindustrial. Em 2024–2025, o próprio governo federal reconheceu a centralidade da infraestrutura portuária do estado ao anunciar retomadas e saltos de movimentação, o que só reforça que cada real investido aqui retorna rapidamente em emprego e tributo. É racional, portanto, que um pedaço maior do que se arrecada em SC permaneça em SC para fechar esses gargalos.
O editorial de hoje não é um brado separatista nem um exercício de vaidade regional. É um chamado à proporcionalidade. O estado que, com seus nativos e imigrantes, transformou colônias agrícolas em polos industriais, portos eficientes e cidades com alto IDH não deve ser punido por fazer o certo. Ajustar o pacto federativo não é “tirar de uns para dar a outros”, é alinhar incentivos: premiar quem formaliza, inovar nos critérios de distribuição, condicionar repasses a resultados e garantir, no mínimo, que a arrecadação local não seja um bilhete só de ida para Brasília.
Santa Catarina já provou que sabe fazer a sua parte. O país precisa fazer a dele. O ônus da competência não pode continuar sendo um pedágio sem volta. É hora de transformar mérito em critério — e justiça em política de Estado.
