O som que deu a volta ao mundo

O som mais alto já registrado.

DMA – IA

Na manhã de 27 de agosto de 1883, uma explosão vulcânica na então ilha de Krakatoa, no Estreito de Sunda (Indonésia), foi ouvida a milhares de quilômetros de distância — da Austrália às ilhas Mascarenhas, no oceano Índico. Relatos e instrumentos meteorológicos registraram o estrondo em mais de 10% da superfície terrestre, marco que consolidou o evento como o som mais amplamente ouvido da era moderna.


O dia em que o céu ruiu

Após meses de atividade crescente, o clímax chegou entre 26 e 27 de agosto de 1883, quando a ilha entrou em colapso em uma sequência de explosões colossais. A coluna de cinzas alcançou cerca de 80 km de altitude, o mar invadiu a caldeira recém‑aberta e tsunamis varreram as costas de Java e Sumatra. As ondas chegaram a mais de 40 metros em partes de Banten, e o saldo humano foi devastador: aproximadamente 36 mil mortos, a grande maioria por tsunami. As cinzas circularam o globo, escurecendo céus, produzindo halos solares e um resfriamento médio global de até 0,5 °C no ano seguinte.

O “maior barulho”: o que, afinal, ouvimos?

A designação de “maior barulho/som” aqui não vem de um decibelímetro junto à cratera — ninguém tinha como medir isso em 1883. O que a ciência tem, de forma sólida, são dois pilares:

  1. Alcance extraordinário de audibilidade humana. O estrondo foi relatado a mais de 2.800 milhas (≈4.600 km) de distância — por exemplo, na Austrália e em Maurício — e há registro considerado o mais distante confiável na ilha de Rodrigues (≈4.800 km a leste de Maurício), onde moradores pensaram ouvir canhonadas no mar.
  2. Uma onda de pressão que deu voltas no planeta. Barógrafos em mais de 50 estações pelo mundo captaram a passagem do pulso de pressão atmosférica repetidas vezes. Em Glasgow, o gráfico registrou sete passagens em cinco dias — ida até o antípoda e volta —, o que implica que a onda circundou a Terra cerca de 3,5 vezes, viajando a 300–325 m/s (na faixa da velocidade do som ao nível do mar).

Nãp sabemos “quantos decibéis” o estrondo teve na fonte com precisão moderna — estimativas variam e dependem de modelos —, mas sabemos que nunca houve, antes ou depois, um som ouvido por tanta gente, em tantos lugares, tão longe de sua origem e tão claramente registrado por instrumentos.

Como um som cruza oceanos

Sons de frequência muito baixa (infrasom) perdem menos energia no ar e podem se propagar por milhares de quilômetros, ainda mais quando a atmosfera canaliza a onda, como acontece em certas camadas da troposfera e estratosfera. O pulso do Krakatoa foi tão poderoso que se comportou como uma perturbação de pressão global, moldada pelos ventos de grande escala — por isso os mapas históricos mostram “lóbulos” de velocidade e direção na volta ao mundo. Curiosamente, locais muito próximos ao vulcão relataram pouco ou nenhum som durante parte do clímax: poeira, geometrias do terreno e refração do ar criaram “sombras acústicas” ali, enquanto a longuíssima onda corria livre a grandes distâncias.

O que aconteceu depois

A erupção de 1883 destruiu cerca de 70% da ilha original e abriu uma caldeira submarina. Décadas depois, um novo cone emergiu do mar: Anak Krakatau, o “filho do Krakatoa”. Em 2018, uma erupção e colapso parcial do cone geraram outro tsunami mortal no Estreito de Sunda — um lembrete moderno da energia que ainda habita o local.


Dados que impressionam

  • Mapa da audição global: a Royal Society, que conduziu um enorme esforço de “ciência cidadã” para compilar relatos, publicou em 1888 um mapa com a área onde os estrondos foram ouvidos — um dos primeiros “atlas” de um fenômeno acústico planetário.
  • Batávia “saiu da escala”: em Jacarta (então Batávia), um gasômetro registrou um salto súbito de pressão tão grande que ultrapassou a escala do instrumento; o mesmo pulso foi captado em barógrafos do Reino Unido e dos EUA horas depois.
  • O som que voltou 3,5 vezes: o barógrafo de Glasgow anotou sete passagens do pulso (ida e volta), marcando cinco dias de ecos atmosféricos do Krakatoa.
  • Tímpanos rompidos no mar: o diário de bordo do navio britânico RMS Norham Castle, a cerca de 64 km do vulcão, relata que parte da tripulação teve os tímpanos estourados com as explosões. É um testemunho histórico frequentemente citado em trabalhos de divulgação.
  • Por do sol “em chamas”: a pluma de aerossóis gerou pores‑do‑sol vermelhos e roxos tão intensos que viraram tema de estudos e de ilustrações publicadas pela própria Royal Society; a NOAA também registrou halos solares e efeitos ópticos “estranhos” nos meses seguintes.
  • Clima global tocado: análises modernas indicam resfriamento médio global de até 0,5 °C em 1884 por filtragem da radiação solar pelas partículas sulfatadas lançadas na estratosfera — as anomalias só se normalizaram por volta de 1888.

O alcance do estrondo, em números

  • Distância de audição mais distante, com registro confiável: ilha de Rodrigues, no Índico — 4.8 mil km do Krakatoa, segundo a literatura científica e compilações históricas; a NOAA cita “mais de 4.6 mil km” em relatos de Austrália e Maurício.
  • Percentual do planeta “que ouviu”: mais de 10% da superfície terrestre teve relatos/instrumentos captando o barulho.
  • Voltas ao mundo da onda de pressão: cerca de 3,5 circuitos completos detectados por barógrafos.

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